Em 1905, São Paulo inaugurava o Museu Paulista, projetado para eternizar uma narrativa de independência que cabia nos moldes da elite branca e europeizada da época. Quase 120 anos depois, a cidade abriga mais de 140 museus — mas o eixo que define quem merece ser lembrado e quem pode ser esquecido ainda existe. Num país onde 56% da população se autodeclara preta ou parda (IBGE, 2022) e onde 16 milhões vivem em comunidades periféricas (Data Favela, 2021), a memória institucional continua a reproduzir, em grande parte, um imaginário construído à margem das maiorias.
As rápidas transformações sociais, tecnológicas e ambientais do século XXI não permitem que as instituições culturais sigam funcionando como vitrines isoladas do mundo. Museus precisam, mais do que nunca, se reconhecer como espaços vivos de produção de futuro — tensionando tradições, reconfigurando suas práticas e, sobretudo, ampliando as vozes que moldam suas narrativas. A ideia de museu como mero guardião de relíquias se esgota diante de um cenário global em que a disputa simbólica é central para definir pertencimentos, direitos e territórios.
Enquanto museus como o Museu Nacional da História e Cultura Afro-americana (National Museum of African American History and Culture), nos EUA, ou o Museu Casa da Memória (Museo Casa de la Memoria), na Colômbia, instituições globalmente reconhecidas por assumirem explicitamente a missão de recontar histórias sob perspectivas antes silenciadas, boa parte das instituições brasileiras ainda resiste a romper com a lógica do patrimônio oficializado. A tragédia do Museu Nacional, em 2018, que consumiu em cinzas mais de 20 milhões de itens, é talvez a imagem mais brutal da negligência com a memória coletiva — mas a ausência de políticas públicas estruturantes para museus revela que o problema é anterior e sistêmico.
Dados recentes do Censo Museológico Brasileiro mostram que apenas 0,4% dos museus do país mantêm exposições permanentes sobre a história afro-brasileira. A memória indígena e periférica tem índices ainda mais baixos. Essa desconexão revela um descompasso crítico num país que não apenas se transforma rapidamente, mas onde as formas de viver, resistir e criar nas margens se impõem como pulsos centrais da cultura contemporânea. Ignorar isso é condenar os museus à irrelevância social.
Inseridos em comunidades dinâmicas e desiguais, os museus que quiserem sobreviver às próximas décadas precisarão entender que sua função vai além da preservação: é preciso disputar a imaginação social. Criar laboratórios de inovação cultural, descentralizar recursos, valorizar e fomentar a criatividade e produção artística em suas múltiplas linguagens, incorporar práticas educativas enraizadas nos territórios e em suas pluralidades, além de promover redes de cuidado e escuta ativa, são ações cada vez menos opcionais. A adesão a práticas inovadoras e a cidades inclusivas deve ultrapassar o discurso e se materializar em projetos consistentes, escaláveis e comprometidos com a transformação histórica e social.
Estabelecido agora no Largo do Páteo do Colégio, no Centro Histórico de São Paulo, o Museu das Favelas se consolida como uma instituição de arte que nasce da demanda por repensar a memória dos territórios populares, em especial os marginalizados em São Paulo — uma demanda que continua atual, mas que precisa de constantes atualizações. Mais do que preservar, o Museu cria projetos que colocam a memória como motor de novas narrativas.
Vale ressaltar que o Museu das Favelas é também, para muitos, a primeira porta de entrada no universo dos museus. A exposição dedicada aos Racionais MC’s, por exemplo, não foi apenas sobre música: foi sobre comportamento periférico, sobre as dinâmicas de passado, presente e futuro de quem cresceu à margem do centro. Atraiu uma multidão de visitantes e mostrou que a experiência museológica pode — e deve — ser construída a partir das vivências populares, que fazem sentido e geram pertencimento formando e atraindo novos públicos. O museu, assim, assume a tarefa de conectar a arte, a história e o cotidiano, criando uma nova gramática de pertencimento para as próximas gerações.
Diferente de museus que buscam se renovar trazendo públicos periféricos pontualmente por meio de temáticas atuais — como o Museu de Arte do Rio, que apostou em uma exposição sobre o funk, ou o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, que apresentou a obra do artista Marcelino Melo, com suas esculturas sobre favelas paulistanas —, o Museu das Favelas já nasce com a potência de ressignificar o espaço museológico em sua estrutura. Sua experiência já desponta como referência para instituições que buscam repensar a renovação de público, de narrativas e, principalmente, de futuro.
Projetar o futuro dos museus, em tempos de transformações aceleradas e poucos recursos, exige mais do que ampliar acervos ou digitalizar coleções. Exige, sobretudo, coragem para mudar as bases sobre as quais essas instituições foram construídas. O futuro dos museus depende de sua capacidade de serem arenas ativas na luta por memória, por identidade e por direito ao imaginário de todos. E para isso, como ensina o Museu das Favelas, é preciso escutar, partilhar, reconstruir — e, muitas vezes, recomeçar.
Referências bibliográficas
- IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2022). Censo Demográfico 2022 – População por cor ou raça. Disponível em:
- Data Favela / Instituto Locomotiva. (2021). Pesquisa Nacional sobre Favelas no Brasil. Disponível em:
- Censo Museológico Brasileiro. (2011). Sistema Brasileiro de Museus / IBRAM – Instituto Brasileiro de Museus. Disponível em:
- Museu Nacional / UFRJ. (2018). Nota oficial sobre o incêndio e perdas patrimoniais. Disponível em:
- Smithsonian Institution. (2024). National Museum of African American History and Culture. Disponível em:
- Museo Casa de la Memoria (Medellín, Colômbia). (2024). Memoria, verdad y conflicto. Disponível em:
- Museu das Favelas. (2023). Site oficial – Acervo, exposições e projetos. Disponível em:
- Fundação Roberto Marinho / Museu de Arte do Rio. (2022). Exposição “Funk: um grito de ousadia e liberdade”. Disponível em:
- MAC Niterói. (2024). Exposição “Etnogênese - O Que É e O Que Pode Ser”, de Marcelino Melo. Disponível em: