No mês em que celebramos o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, fui atravessada por uma experiência potente: visitar a exposição Tromba d’água, em exibição no Museu do Amanhã. Ali, diante das obras de 27 artistas de 9 países da América Latina, senti a força de um chamado ancestral , um chamado que vem das águas, dos ventres, das vozes e das sabedorias que insistem em viver, resistir e transformar o mundo.
A exposição me tocou profundamente. Não só pelas cores, formas e sons, mas pela presença viva da água como elo entre espiritualidade, ancestralidade e futuro. Para mim, lésbica negra brasileira e umbandista, ver as águas representadas como espaço de vida e força (e não de destruição ) é uma saudação direta às matriarcas que me antecedem. Iemanjá, Oxum, Nanã: as águas que habitam e guiam nossas travessias estavam todas ali. Fluindo.
Tromba d’água não é apenas uma mostra sobre o clima. É sobre sobrevivência, sobre saberes que vêm antes da crise. As artistas apresentam tecnologias ancestrais que reencantam o mundo, apontam caminhos coletivos e reafirmam o que o Ocidente muitas vezes ignorou: o futuro não será branco, masculino e hegemônico. O futuro é circular, feito de ciclos, de giras, de memória e recomeço.
Como lembra Françoise Vergès, em Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta, os museus precisam romper com a ideia de neutralidade e encarar sua responsabilidade na produção de narrativas coloniais. Museus que acolhem vozes dissidentes, como nesta exposição, atuam como espaços de reparação histórica e imaginação radical. Eles não apenas expõem obras, mas oferecem abrigo para sonhos coletivos.
E sonhar, para nós, mulheres negras latino-americanas e caribenhas, sempre foi também uma forma de resistência. Sonhar é uma estratégia de sobrevivência ancestral. Ao ver as obras expostas, pensei em quantas vezes fomos expulsas das imagens, da história, da ciência e como seguimos retornando. Como a água nos seus movimentos cíclicos.
No pensamento africano-diaspórico, o conceito de Sankofa nos ensina que é preciso olhar para trás para seguir adiante. A exposição Tromba d’água é esse gesto: resgate e reinvenção. É também um grito por justiça climática. Afinal, somos nós, mulheres negras das periferias do mundo, as mais afetadas pelas crises ambientais, mesmo sendo as que menos contribuíram para elas. Quando uma exposição como essa ocupa o Museu do Amanhã, ela não apenas denuncia, mas reequilibra. Honra. Repara.
A água me ensinou que tudo é fluxo: nascimento, morte, reinício. Me lembrou que há vida dentro de nós que também é mar. Que há luta, mas há festa. Que há dor, mas há dança. Que há silêncio, mas há tambor.
Neste 25 de julho, ao celebrar nossas histórias, nossos corpos e nossas vozes, renovo meu compromisso com um amanhã onde caibam todas as mulheres negras. Um amanhã onde cultura, ciência e espiritualidade caminhem juntas. Onde o museu seja também um quilombo. E onde a água, em vez de nos afogar, nos banhe de futuro e recomeços.