“As pessoas devem vir ao Museu das Favelas para exercer seu direito de acesso à cultura, encontrar um lugar de pertencimento. Vir ao Museu é desfrutar com outros pares a diversidade cultural que há nas expressões das favelas”. É a partir dessa premissa que Natália Cunha, diretora da instituição, defende a função social do equipamento, localizado na região central da capital paulista.
Hoje, aos 41 anos, a psicóloga relembra que seus primeiros exemplos de diversidade foram a partir da história de vida de seus pais e da diferente forma como ela e os irmãos experienciaram sua negritude na infância — ela conta que viver situações de discriminações juntos, enquanto cresciam na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, a influenciou a questionar o que se tratava de racismo ou questão socioeconômica.
“Meu pai vem daquela família de trabalhadores de serviços muito simples que foi superando a escassez e minha mãe cresceu em um orfanato feminino [em São João Batista do Glória, Minas Gerais] e veio para São Paulo tentar a vida, um objetivo que era da minha avó. A gente começa a ter essas referências de vários tipos de superação dentro de casa”, diz ela. “Olho para o mundo muito nesse sentido, de ‘como é que eu supero alguma coisa?’, ‘o que de fato eu tenho de oportunidade aqui?’, sabendo que eu teria que ir buscar, porque essa referência estava dada desde sempre.”
É dentro do imponente Palácio Campos Elíseos que Marie Claire conhece tête-à-tête a história de Natália Cunha desde sua origem até seu posto no Museu. O espaço, tombado como patrimônio histórico em 1977, passou anos entre mudanças de sua funcionalidade e reformas até, em 2022, abrigar o Museu das Favelas. A partir de então, esse se consolida como uma referência na exaltação e manutenção da cultura e produção das periferias brasileiras.
E não demora muito para entender como o Museu das Favelas subverte a lógica de origem eurocêntrica e colonial que definiu por séculos qual memória seria preservada e quem a contaria. As boas-vindas para quem chega fica a encargo do simbolismo pautado na ancestralidade e afeto de Raízes, da artista paranaense Lidia Lisbôa, que trata-se de um seio esculturado com técnica de crochê de modo colaborativo com mulheres do Coletivo Tem Sentimento, Cooperativa Sin Fronteiras e das proximidades do museu.
É a primeira e, até o momento, única instalação permanente do prédio. Raízes é um convite irrecusável para uma conversa que se desenvolve dentro do museu com inúmeros artistas, expressões e histórias que — sobretudo — te colocam para pensar sobre a formação da memória (a que deixamos ser apagada e a que queremos construir e celebrar). É a concretização perfeita, ou quase perfeita, daquilo que Achille Mbembe descreveu como antimuseu.
Museu das Favelas e a ideia do antimuseu
Natália Cunha conta que foi ao entrar no curso de psicologia, em 2000, que passou a se aprofundar na realidade das periferias e favelas de São Paulo — atualmente mora na zona norte de São Paulo. “Até meus 18 anos nunca tinha atravessado a ponte sabendo o que era o outro lado da ponte. Eu atravessava; porque grande parte dos meus familiares estão nas periferias. Mas não tinha essa consciência”, recorda.
Ela se formou na Universidade São Marcos. “Na universidade comecei a discutir as pautas sociais. Acho que existe uma obrigação de um letramento racial por parte das pessoas que não são pretas, e as pessoas pretas começaram a se localizar melhor nesses contextos diversos que vivemos.”
“Eu aprendi a viver vivendo. E aquilo antes que não tinha nome passa a ter dentro da universidade.”
No quarto ano do curso, ciente das questões sociais que passavam por sua vida, Cunha decide que sua área de atuação seria a social, a qual deu sequência, desde 2011, em diferentes posições em projetos culturais na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e em outros aparelhos governamentais, em serviços que vão desde o acolhimento para criança e adolescente até atuação nas pautas de HIV e Aids e população em situação de rua. “Desde ser uma mulher, ser preta, ser pobre. Por ser uma universidade privada, eu era bolsista. Foi uma das primeiras turmas do Fies e comecei a entender a importância das políticas públicas.”
A chegada de Cunha à direção do museu está alinhada com sua visão sobre o papel da cultura dentro da cidade. “Assumir a diretoria do Museu das Favelas significa o ápice da minha carreira por enquanto. É poder olhar para todos os processos que envolvem a gestão pública com uma pauta tão representativa e em um espaço tão simbólico. É realmente muito gratificante”, diz.
“Precisamos cada vez mais entender a cultura como um centro. Um lugar possível de criação, pertencimento e afetividade. Se entendêssemos a cultura como um centro, toda a dinâmica do entorno precisaria também. Teríamos um plano de mobilidade e comunicação pensado para o acesso democrático aos espaços culturais”
Ao questionar o simbolismo dos museus, o historiador e cientista político Achille Mbembe destacou como essas instituições atuam como um instrumento de poder e influência, sobretudo como um outro meio de reafirmar ideais que partem do colonialismo. Inclusive, toda discussão recente sobre o retorno do Manto Tupinambá, neste mês, que estava no Museu Nacional da Dinamarca, para o Brasil também caminha nesse sentido.
O autor descreve a ideia de "antimuseu" como uma forma de "lugar-outro", que traz com destaque a história que antes ficava no "apêndice" de outra história: “é uma espécie de celeiro do futuro, cuja função seria abrigar o que deve nascer, mas que ainda não chegou”, escreveu em Brutalismo (N-1 Edições; 256 págs.; R$ 98,00). É também por isso — entre outros fatores específicos da realidade brasileira, claro — que quando Natália Cunha usa palavras como "pertencimento" e "afetividade" para se referir ao Museu das Favelas faz tanto sentido. É uma "hospitalidade radical", nos termos de Mbembe.
Quando perguntada sobre os nomes que a inspiraram ao longo de sua trajetória nas políticas culturais, a diretora é franca na resposta que reafirma a conexão que tem com sua própria história: “tenho algo que é tratar as pessoas de forma muito igual. Então, as minhas referências são pessoas comuns, como as minhas primeiras chefias. Elas me inspiraram no cotidiano pelo respeito que tinham com o trabalho e pelo espaço que me deram.” Cunha também cita o apreço e admiração por Ana Lucia Gondim Bastos, sua professora no curso de psicologia.
Maternidade e um novo olhar sobre o acesso à cultura
O nascimento de Zuri, em 2011, trouxe para a vida de Natália Cunha experiências que passaram da maternidade para seu trabalho. Ela relata que foi a partir da relação com o filho que desenvolveu seu olhar sobre a acessibilidade na cultura. “No meio do caminho eu tive um filho e acho que surge uma cobrança que parece pessoal, mas é muito social. De como você se atualiza e se sustenta no mercado de trabalho, principalmente sendo uma mulher preta, e nesse caso mãe solo. Tenho a guarda compartilhada, mas a responsabilidade da maternidade é minha”, conta.
“Com dois anos, a gente fecha o diagnóstico do meu filho de autismo e hiperatividade. Dentro de casa fomos entendendo o que era autismo e ele como ia se desenvolver com os estímulos que a gente poderia ofertar ali. Fui identificando problemas que são estruturais e a questão da inclusão me tomou bastante tempo. Tive que correr atrás de garantir a inclusão do meu filho nos serviços essenciais. E me fez pensar sobre isso em todos os espaços que eu passo.”à cultura, encontrar um lugar de pertencimento.